Condições de trabalho: estado sólido para trabalhadores “líquidos” PDF Imprimir e-mail
Escrito por João Fraga de Oliveira   
30-Abr-2012

Condições de trabalho: estado sólido para trabalhadores ?líquidos? 

Trabalho em migalhas?. Há cerca de 60anos foi esta a metáfora utilizada pelo sociólogo francês Georges Friedman para caracterizar o modelo de organização do trabalhoque, então, era prática nas empresas: trabalho em cadeia, hiperdividido, monótono,repetitivo, intensificado e alienante. Charlot,em Tempos Modernos (?desenroscando?os botões da gabardine dos transeuntes, à saída da fábrica onde só desapertava porcas),caricaturou bem esse modelo de organização ?científica? do trabalho teorizado, há mais ou menos cem anos, pelo engenheiro americano Frederick Taylor. (...)

 (...) Todavia, tal modelo de organização do trabalho dito ?em migalhas? era, então, típico de empresas rigidamente estruturadas e organizadas, verticais, ?sólidas?. Agora são as empresas que estão ?em migalhas?, fragmentadas por outsorcing, subcontratação, franchising, ACE, consórcios, ?unidades de negócio? ?grupos?, etc.

A metáfora ?migalhas? está mesmo ultrapassada, porque cada vez mais as empresas têm que se tornar ?líquidas?, no sentido de terem de se adaptar à ?forma? (exigências) do mercado que as ?contém?. E tendem mesmo a tornar-se ?gasosas?, surgindo ?na hora? e esfumando-se num ápice em deslocalizações, encerramentos e falências repentinas, ?bolhas? e offshores.

Ao mesmo tempo, com a precariedade como regra, o trabalho ?em migalhas? degenerou em trabalho ?às gotas?: a termo, temporário, estágios, ?recibos verdes? (muitos destes falsos, escondendo trabalho subordinado). ?Gotas? cada vez mais pequenas (períodos de emprego cada vez mais curtos) e a ?pingar? mais espaçadamente (períodos de desemprego cada vez mais longos).

?Rigidez do mercado de trabalho? é, agora, a metáfora utilizada por políticos, empresários e  ?especialistas residentes? para, juntamente com os ?altos custos do trabalho?, nos (re)explicarem a ?falta de competitividade? da economia portuguesa e a pouca atratividade para o investimento estrangeiro. E, assim, ?justificarem? a ?reforma da legislação laboral? no sentido da facilitação dos despedimentos, do aumento da duração do trabalho, da diminuição objetiva dos salários e, em geral, da diminuição dos direitos dos trabalhadores e da proteção social no desemprego.

A estabilidade do emprego, a dignidade do (no) trabalho e a proteção social no desemprego, que são condição humana e social do projeto profissional, pessoal e (sobretudo) familiar, são, assim, descaracterizadas como ?rigidez do mercado de trabalho?, a recorrente ?mãe?, em Portugal, de todas as crises. Contudo, quem observa de perto e continuadamente os locais e situações de trabalho e, sobretudo, quem vive o quotidiano das (nas) empresas, designadamente, os   empregadores empreendedores e socialmente responsáveis, sabe e reconhece que a ?rigidez do mercado de trabalho? tem sido muito a habitual ?peneira? para encobrir as insuficiências de qualificação e de capacidade de (re)organização e gestão empresarial no recrutamento, seleção, integração, formação,  responsabilização, disciplina e organização do trabalho das pessoas, a falta de atualização técnica, tecnológica e de inovação na produção e no mercado das empresas, as dificuldades de financiamento bancário (sobretudo das PME), os custos da energia, dos combustíveis, dos transportes e das comunicações, a burocracia administrativa, a incapacidade de aproveitamento das disposições legais favoráveis, o incumprimento impune da Lei, a concorrência desleal entre empresas, o não funcionamento eficaz, eficiente e atempado da Justiça.

E, sonegando tudo isto, a estratégia é ?ajudar-nos? a concordar (?concertar?), conformadamente, que já não basta ?esmigalhar-se? e ?liquidificar-se? o trabalho, a organização e as condições em que as pessoas o realizam, sendo ?inevitável? ?esmigalhar? também os trabalhadores e a sua condição social e familiar (com ou sem ?visto familiar? respetivo): por quaisquer vários empregos, estatutos, horários de trabalho, locais de trabalho e funções desprofissionalizantes, desqualificantes, precárias, invadindo a vida familiar, sem condições de trabalho e mal remuneradas. Insidiosa e perigosamente, progride a ?naturalização? e a banalização do (des)nivelamento no retrocesso dos direitos sociais, com base na intoxicação mental de que as condições de trabalho (ou seja, por implicação, a vida, a saúde e a família das pessoas) e até o ar que se respira estão ?acima das nossas possibilidades?.

Não tardará que nos ?ajudem? a concluir da ?inevitabilidade? de se voltar ao modelo cientificamente ?competitivo? e ?atrativo? de há um século (ou mesmo de há 50 anos), do trabalhador amorfo (submisso, humilhado, sem participação), com os direitos ?dissolvidos? na progressiva desregulamentação e desregulação, com o salário e o nível de vida diluídos pelos sucessivos cortes e aumento de impostos, ?feito em água?, ?espremido? e ?sugado? (física, mental, familiar e socialmente) pela duração, ritmo, penosidade, sobreintensificação, (des)organização ou falta de condições de trabalho, sujeito a ser ?despejado? (ou, até, por telemóvel, ?teledespejado?) para a rua de qualquer maneira. Não espantará até que surja, adicional ao famigerado ?memorando? da troika, (ainda) mais uma medida, mais um ?esforço colossal? e ?extrordinário? com execução imediata (quiçá retroativa): para serem (ainda) mais ?flexíveis?, mais moldáveis ao ?vaso? de desigualdades sociais, degradação das condições de trabalho, desvalorização dos salários e pensões, bem como à desregulação e violação dos direitos laborais induzida pelo desemprego ?cá fora?, os trabalhadores, eles próprios, devem passar ao estado líquido. Trabalhadores ?líquidos?.

Daí ser exigível mais ?solidez? (oportunidade, eficiência e eficácia) do controlo público das condições de trabalho e da justiça do trabalho na prevenção e sancionamento exemplar da violação do direito das pessoas a um trabalho digno. Isto é, do ponto de vista de garantia de condições de trabalho dignas, com trabalhadores cada vez mais ?líquidos?, o Estado deve ser cada vez mais sólido.

João Fraga de Oliveira

Inspetor do trabalho (aposentado)

Actualizado em ( 07-Mai-2012 )